sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Miríade de sincronias

Eu sou fã de Masterchef. Gosto de me torturar vendo aqueles pratos maravilhosos enquanto eu estou comendo bolacha creme cráqui que harmoniza perfeitamente com uma taça de água. E também estou torcendo para o William nessa temporada. Essa semana, foi uma agonia o prato dele na prova de eliminação. Eu estava tão nervosa quanto ele jurando que o prato tinha dado errado. Como errar um arroz?! Mas aí, apesar dele se assegurar que o prato não estava digno para garantir sua vaga para a semifinal, os jurados amaram. E diante da decepção clara no comportamento do William, apesar da aprovação do prato, o chefe Jacquin fez um discurso que me tocou:

“Às vezes a gente faz as coisas sem querer. Às vezes a gente consegue, porque somos bons cozinheiros, porque a gente tem sorte, ou porque a gente ama o que a gente faz, e as coisas vem sozinhas. Não se esqueça disso.”

Recentemente eu escrevi sobre meu processo de depressão. Como foi difícil o aceitar que eu estava mal e que precisava tomar um tempo, indeterminado, para me cuidar. Mas apesar da necessidade urgente de me entender para ter forças para recolher os caquinhos do que eu era e tentar me reconstruir, o mundo não para de girar. E a vida continua. Eu sou mestranda e tenho uma dissertação para produzir. Entretanto, como produzir algo se eu mesma estava tentando me reedificar? Eu não podia me forçar, na verdade, eu nem tinha forças para agir. Não tinha como correr uma maratona com ambas as pernas quebradas. Eu sentia que, talvez, eu conseguisse voltar a ter o movimento das pernas. Mas eu precisaria de várias sessões de fisioterapia, e talvez eu ainda tivesse sequelas do acidente para todo o sempre.

Tiveram dias que eu precisei ficar de cama, imóvel, ou colocaria em risco os ossos que precisavam de descanso para se recuperar. Alguns dias, tentei levantar e até consegui andar com ajuda de alguém ao lado, mas os ossos ainda estavam fracos e precisei voltar para a cama. Quando eu entendi que precisava respeitar o tempo do meu corpo, eu esperei. Aos poucos consegui levantar e andar com o carrinho. Depois com muletas. Às vezes ainda sentia uma pequena dor, mas respirava, pensava: “eu já evoluí muito. Tudo bem não estar me sentindo curada ainda, se é que irei um dia”. Até que um dia, depois de algumas semanas andando só com ajuda de uma bengala, consegui andar sozinha. Me senti forte. Na verdade, até mais forte do que antes. Parecia que eu mesma tinha consertado os ossos das minhas pernas. Sentido cada pedaço quebrado voltando ao lugar certo, mesmo que com marcas no lugar onde rompeu.

E me sentindo bem para voltar a produção da dissertação, voltei. Voltei a maratona. E parece que as semanas, os meses que tirei para respeitar o tempo necessário para os meus ossos se fortalecerem os fizeram ainda mais resistentes. Mais robustos. Eu pensava que no longo tempo em que precisei esperar para andar com minhas próprias pernas, eu não tinha produzido nada. Mas na verdade, minha mente só estava esperando que minhas pernas estivessem bem para me mostrar um mundo de ideias que se formou nesse tempo em que eu pensava estar sendo uma mera paciente do meu destino. Em um dia escrevi coisas que eu nem esperava que fossem sair de mim.

E daí, o Jacquin me surpreendeu com esse discurso. Às vezes achamos que estamos perdendo nosso tempo, quando estamos nos maturando. Como um vinho guardado por longo tempo em uma adega para se transformar em um vinho memorável, cheio de histórias, com uma complexidade de sabores. Com uma identidade própria. É permitir que o tempo transforme nosso arranjo de grafite.

A botânica Robin Wall Kimmerer, falando do Schistostega pennata, um musgo singular no mundo botânico, nos traz:

Timing is everything. Just for a moment, in the pause before the earth rotates again into night, the cave is flooded with light. The near-nothingness of Schistostega erupts in a shower of sparkles, like green glitter spilled on the rug at Christmas… And then, within minutes, it’s gone. All its needs are met in an ephemeral moment at the end of the day when the sun aligns with the mouth of the cave… Each shoot is shaped like a feather, flat and delicate. The soft blue green fronds stand up like a glad of translucent ferns, tracking the path of the sun. It is so little. And yet it is enough. [...] The combination of circumstances which allows it to exist at all are so implausible that the Schistostega is rendered much more precious than gold. Goblins’ or otherwise. Not only does its presence depend on the coincidence of the cave’s angle to the sun, but if the hills on the western shore were any higher the sun would set before reaching the cave… Its life and ours exist only because of a myriad of synchronicities that bring us to this particular place at this particular moment. In return for such a gift, the only sane response is to glitter in reply.”

Não sabemos quando nos acontecerá esse momento efêmero da entrada da luz do sol na caverna em que nos encontramos. Ou se as montanhas da costa oposta impedirão que o sol entre. Mas a verdade é que nossa vida é resultado dessa miríade de sincronias e por mais que eu tenha pensado que eu perdi tempo no processo de cura dos meus ossos, talvez, os momentos em que eu estava na cama, andando com ajuda das muletas e depois da bengala, foram exatamente os momentos em que a luz do sol estava alinhada a entrada da caverna. A flor do Mandacaru só se abre na madrugada. Nossa luz também pode ser a escuridão. Aliás, a luz só existe com a existência da escuridão. E a escuridão, da luz.

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